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«A Maia portou-se muito dignamente»

«A Maia portou-se muito dignamente»

Depois de uma primeira fase “Covid19”, muito virulenta, em que o conhecido médico maiato Ricardo Filipe Oliveira explicou nas nossas páginas a doença, agora, com a entrada do Outono/Inverno, estações que trazem normalmente patologias respiratórias associadas ao vírus da gripe e com o actual crescimento do número de infectados, novas questões se colocam, motivo para mais uma importante entrevista exclusiva do seu MaiaHoje.

MaiaHoje (MH): Estamos já ou a caminho de uma segunda vaga Covid19?

Ricardo Filipe Oliveira (RFO): Pelos dados actuais podemos dizer que já fomos atingidos por uma segunda vaga. Esta vaga tem características diferentes da primeira, com, para já, a idade dos infectados a revelar-se menor em média, que parece explicar o menor número de internamentos e de mortes.

«É inevitável que o vírus evolua, temos é de nos adaptar e saber responder com eficácia»


MH: Poderá haver uma nova Covid20? Explique-nos por favor o que seria.

RFO: Não. A doença é sempre a mesma. Existe apenas COVID 19, podendo haver múltiplas estirpes, mais ou menos virulentas e mais ou menos mortais. Aliás na primeira vaga, quando foi estudado o vírus, foram detectadas 4 mutações em Portugal relativas ao vírus original da China. Neste momento, as mutações devem ser em maior número. É inevitável que o vírus evolua, temos é de nos adaptar e saber responder com eficácia. Como já tive a oportunidade de explicar da última vez, o vírus veio para ficar e vai continuar a mutar, temos é de ter as armas certas para o combater

MH: Festas, ajuntamentos, confinamentos locais, diferenciamento de tratamento entre áreas, a tudo assistimos neste verão. Parece, ao leigo, que há uma certa confusão nas medidas tomadas. Acha que a DGS está a funcionar adequadamente?

RFO: Julgo que essa confusão não diz respeito apenas ao leigo. Temos alguma dificuldade em compreender algumas das orientações da DGS. Claro que não temos em nosso poder toda a informação que necessitamos para emitir uma opinião correcta, mas com aquela que dispomos parecem haver muitas medidas contraproducentes, e por isso incompreensíveis. Devia haver mais transparência e clareza.

MH: A abertura do ano escolar tem sido um “mar” de dúvidas e incertezas. Ouvi na televisão alguém responsável dizer que há evidências que os jovens não transmitem Covid uns aos outros, citando inclusive um caso de dois irmãos e família contaminados, mas com os seus círculos de amigos a acusarem negativo. É possível?

RFO: Sabendo o mecanismo fisiopatológico do vírus, bem como o seu “ciclo de vida”, não, não é verdade.
Vamos lá ver. O teste realizado não tem 100% de sensibilidade, nem 100% de especificidade, o que significa que há falsos positivos e falsos negativos entre nós. Adicionalmente, tem de haver um conjunto de oportunidades e de condições favoráveis a que o vírus se transmita, nomeadamente a distância, o local, o tempo de contacto entre muitas outras. É natural que num agregado, fruto da proximidade diária haja uma maior probabilidade de contaminação do que num contacto esporádico de um grupo de amigos.

«Disse há cerca de 9 meses ser improvável uma vacina até ao final deste ano. Agora,
mais perto do final do ano, mantenho essa posição»

MH: Tem havido muita informação sobre as vacinas. Ainda acha que não estará disponível ao público, até ao fim do ano, uma vacina “credível”? Sei que será difícil fazer futurologia, mas, a este ritmo, quando será plausível a vacinação em massa?

RFO: Achei curioso ter aplicado a palavra credível. Como sabe, até quando falamos sobre este assunto da primeira vez, disse há cerca de 9 meses ser improvável uma vacina até ao final deste ano. Agora mais perto do final do ano, mantenho essa posição. Depois de ter a vacina que a qualificou como credível, ainda temos de a produzir, e julgo que nesse capítulo os países economicamente mais fortes terão uma primeira palavra a dizer. Por isso em Portugal, é legitimo apontar para o Outono de 2021, mas ainda assim com bastantes reservas.

«Um simples vírus pôs a nu a debilidade de uma medida política»

MH: Tem sido público os elogios ao trabalho da Câmara da Maia nesta área. Acha que a autarquia, dentro dos seus limites, tem estado na linha da frente do combate? E da melhor forma?

RFO: Essa é uma pergunta interessante. Interessante porque a COVID surge no meio de um processo de descentralização de competências na saúde. Processo esse que desde logo os municípios se indignaram pelo envelope financeiro ser curto para as responsabilidades que lhes eram imputadas. E surge o COVID… já viu? Um simples vírus pôs a nu a debilidade de uma medida política, na minha opinião, precipitada e mal pensada. A Maia portou-se muito dignamente. Note que se tratou de algo nunca vivido por ninguém … e perante o desconhecido só sabemos se é bom ou mau à posteriori, mas mesmo assim realocou lares de idosos em hotéis de 4 estrelas, arranjou internamentos COVID, teve uma das primeiras unidades de testagem “drive thru”. Julgo que o esforço tem de ser reconhecido.

«A realização de mais testes serológicos e com a evolução da pandemia serão importantes
para podermos traçar um perfil serológico deste vírus»

MH: Qual é a importância dos testes serológicos?

RFO: Os testes serológicos permitem perceber se alguém teve contacto com o vírus. Não permitem ainda declarar se a pessoa está imune ou não, mas com a realização de mais testes serológicos e com a evolução da pandemia serão importantes para podermos traçar um perfil serológico deste vírus.

MH: Os testes rápidos são fiáveis? Porque é que não se fazem mais?

RFO: Os testes rápidos têm uma sensibilidade e uma especificidade menores do que a opção actual. Logo dão mais falsos positivos e mais falsos negativos. No entanto, se estamos a pensar numa testagem em massa para a detecção dos portadores assintomáticos, sou claramente a favor da sua utilização, e todos os que derem positivos confirmarem pelo teste actual de modo a ter um resultado mais fiável.

MH: A terminar, aconselha o uso de máscara, mesmo na rua? Que conselhos pode dar mais aos nossos leitores?

RFO: Outra pergunta muito interessante. Deixe-me responder pela DGS. Sim devemos usar em todo o lado. Agora deixe-me responder pela OMS: não. Só contactando com grupos de risco ou grupos vulneráveis, ou se estiver sintomático ou confirmado, ou ainda se fizer parte de uma profissão de contacto próximo com o risco de alguém de estar doente.
Confuso? Pois… deixe-me acrescentar mais confusão. As máscaras cirúrgicas foram pensadas para o bloco cirúrgico para filtrarem partículas acima dos 100 arg. O influenza (o vírus mais normal da gripe), mede cerca de 120 arg. Estudos recentes mostram que este coronavírus mede entre 70 e 80 arg! E agora?

«As máscaras têm sido um debate muito interessante com argumentos pro e outros contra»

As máscaras tem sido um debate muito interessante com argumentos pro e outros contra. Nem sequer vou entrar pela discussão da máscara de pano, da lavagem de máscaras, na reutilização de máscaras e nem da forma de as colocar ou retirar.
No meio do desconhecido em situações de densidade populacional, parece-me adequado o uso, mesmo com os argumentos esgrimidos em cima. Se estiver sozinho numa rua, já não me parece tão adequado. Deve haver um equilíbrio como em tudo na vida, mas perante a falta de confirmação de dados julgo que nisso a DGS esteve bem.
Etiqueta respiratória, lavagem das mãos e distanciamento social, são até ao momento as medidas mais eficazes e não li nada que o contradissesse.

«Os médicos de família não estão a dar menos consultas, pura e simplesmente quadruplicaram o seu trabalho»

A terminar perdoe-me que desminta alguma da comunicação social, porque tem sido de facto inglório e uma injustiça para os médicos de família. Como sabem os médicos de família já estavam lotados de trabalho, já mal podiam dar resposta aos pedidos diários. Agora some a esse trabalho a vigilância de todos os doentes COVID, a escala de urgência para áreas dedicadas COVID, e todo o trabalho que a COVID veio somar. Os médicos de família não estão a dar menos consultas, pura e simplesmente quadruplicaram o seu trabalho, e se não houver rápidas medidas de intervenção em breve teremos situações de burnout, que vão ainda ratear mais os recursos humanos disponíveis.

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Comentários (2)

  • José A. Varandas Responder

    Excelente entrevista. Respostas claras e perceptíveis pela população.

    2 de Outubro, 2020 a 21:15
  • Patrícia Fontes Responder

    Gostei muito da entrevista.
    As respostasforam dadas de forma clara e não vi atitude de carrasco sobre as medidas do governo da DGS pelo contrário é como costumo dizer a situação actual é nova e perigosa desconhecimento a nivel mundial, por isso mesmo Portugal tem estado muito bem .
    Quando não existem varinhas magicas as soluções são dadas passo a passo não arranem mais problemas para o pais .
    Parabéns pelo excelente trabalho realizado assim vale a pena estar informado .felicidades e boa sorte para todos

    4 de Outubro, 2020 a 9:52

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