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Ler o Maia Hoje a 12.000 quilómetros é como voltar a casa!

Ler o Maia Hoje a 12.000 quilómetros é como voltar a casa!

O mapa da minha vida passa por muitas cidades pelas quais, aos poucos, me fui espalhando e onde fui deixando bocadinhos de mim.

A primeira das minhas cidades é Maputo, onde nasci quando ela tinha ainda outro nome. A de hoje é a Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, a cidade dos muitos nomes, cada um deles com um tom de mistério e segredo: simplesmente Macau para reinóis e macaenses, Oumun para os chineses locais e das redondezas, Aomen para os que vêm do Norte, Macao para os gringos que a confundem com Las Vegas ou com um arredor de Hong Kong.

Com o Porto, a cidade que me tem ficado como a casa a que sempre volto é a Maia. A Maia das minhas irritações pela falta de comércio de jeito e de salas de cinema, pela inoperância dos transportes públicos, pelo desaparecimento dos multibancos, pelo absurdo dos novos estacionamentos acrobáticos de marcha-atrás nas espinhas de sentido invertido, pela irracionalidade dos horários da recolha de lixo na minha rua, pelo estrume de cão nos passeios é a mesma Maia aonde me lembro de ter chegado em 1976 quando ainda havia campos verdes que se cobriam do branco das geadas e aonde se ia comprar leite ao lavrador e peixe à carrinha ambulante. É a mesma onde comprei a primeira (e a segunda) casa que tive. É a Maia onde tenho sepultados alguns dos mais queridos dos meus entes queridos. É a Maia aonde voltei como a um berço, durante trinta anos, ao fim de incontáveis dias de trabalho árduo no Porto com a sensação de que uma ceia e uma almofada me esperavam para me dar sossego, descanso e paz. É, acima de tudo, a Maia em que os meus filhos cresceram felizes, muito felizes, em segurança, com conforto e com as melhores escolas (as mesmas que haviam sido minhas) e os melhores amigos que tiveram.

Quando cheguei a Macau, das primeiras coisas que fiz foi comprar uma assinatura do Maia Hoje. Essa pareceu-me a melhor forma de continuar a ter nas minhas mãos, fisicamente falando, um pedaço desse canto de Portugal onde continuo a ter uma casa discreta e um minúsculo jardim, uma família e uma biblioteca.

O jornal nunca chega a um dia certo, mas, quando chega, os secretários do Departamento já sabem que vou sorrir (é como estar na Maia…) e fechar a porta do gabinete para, com um chá acabado de ferver, lê-lo avidamente de ponta a ponta, fazendo esperar quem tiver de esperar. Ao lê-lo, sinto-me transportado, nesta longínqua China – neste canto da China onde a língua é, de certa forma, a mesma da Maia –, para os passadiços e vielas das minhas caminhadas, para a esplanada do Turista, para os dois dedos de conversa que gosto de trocar com velhos conhecidos e com os comerciantes que sobram de outros tempos. Fico a par das novidades, mato saudades – e aprendo, aprendo sempre qualquer coisa sobre um passado que algumas ideias de “progresso” quiseram apagar, mas que esplêndidos                   textos como os de Fernando Teixeira e Rui Teles de Menezes teimam em manter vivo na memória, nessa memória sem a qual as cidades deixam de precisar de ter nomes.

Acho que tenho poucos vícios. Um deles é o dos jornais – porque gosto de ler e porque, neto de tipógrafo, cresci entre tipografias de jornais, o último deles justamente um jornal da Maia: o Jornal da Maia, com a sua tipografia no Largo do Outeiro, em Vermoim (numa casa onde hoje funciona, se não erro, um salão de cabeleireiro), aonde o meu avô materno, de quem herdei (entre outras coisas) o perfecionismo, regressava várias vezes por dia para ir vigiando a impressão de cada número, sempre com qualquer desesperante gralha para corrigir.

Para Macau, a 12.000 quilómetros da Maia, trouxe-me a causa da nossa língua e do seu ensino. Nos primeiros tempos, quando acabava de ler cada número do Maia Hoje guardava-o e trazia-o para casa. Depois, comecei a partilhá-lo com os outros professores e alunos do Departamento. Ver a alegria e o interesse com que os alunos chineses liam os textos do jornal, faziam perguntas sobre aquela cidade desconhecida, se interessavam por um tipo de jornalismo que importa preservar, mostravam curiosidade por um dia poderem conhecer a Maia levou-me a decidir deixar sempre o jornal na sala de leitura (quando aparece algum texto que me interessa mais, fotocopio e guardo a cópia).

Não sei se a quem edita cada número e a quem escreve cada texto alguma vez ocorreu que o seu trabalho haveria de chegar a Macau e despertar interesse em jovens chineses que com sincera paixão estudam a nossa língua. Este é um dos sucessos, aparentemente insignificante, do jornal que agora celebra as suas Bodas de Prata.

Parabéns ao Maia Hoje e muitas felicidades para os próximos 25 anos de vida, com esta função insubstituível que é também a de trazer a cada semana um bocado do nosso concelho a paragens tão distantes como Macau, fazendo do longe perto e da voz eco.

João Veloso
Professor Catedrático de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e ex-Pró-Reitor da Universidade do Porto,
Professor Catedrático de Linguística e Diretor do Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau

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